quarta-feira, 6 de maio de 2009

Teatro à beira da estrada

O Teatro seguiu em direcção ao Mar. Tive a esperança de o olhar, nem que fosse de esguelha. Mesmo que a direcção fosse outra, seria impossível não senti-lo, não apenas por que circula em mim, mas também por que o calor não parava de apertar. Olhá-lo, seria como que ter a capacidade de abrir o vidro da janela do lado do condutor, o meu lado, que também havia resolvido ir de fim de semana prolongado. Na Volta da Pedra, apontei a camioneta no encalço do Mouzinho e da Isilda que, mal nos avistaram, levantaram convictamente os braços, não só para nos indicarem que ali estavam mas, também, num gesto de boas vindas. Segui-os, abstraindo-me do caminho. Se quisesse repeti-lo, certamente que me perderia. O sinal do pisca esquerdo do carro que nos rebocava, juntamente com o braço do Mouzinho fora da janela, sorte a dele que não lhe deu mini-férias, anunciou a chegada. Se estivesse na América, diria que tinhamos chegado a um qualquer motel na Route 66. Quem sabe se um dia aterramos algures entre Chicago e Los Angeles para exibir, à beira da estrada, a peça Duas Cartas de Júlio Dinis ou qualquer outra obra de um autor Português. Estás a alucinar, estão agora a sussurar-me ao ouvido. E não será isso uma prática comum, questiono de volta. Afinal, cada qual vive a sua ficção. Menos razoável será viver a alucinação dos outros. Estou a tratar de ser razoável.
O cenário já estava montado, entre o palco e a plateia, e as cadeiras de plástico alinhadas com optimismo. Havia lugar sentado para mais de uma centena de espéctadores. Apareçeram pouco mais de vinte. Alguém me disse que a Figueirinha estava como os transportes públicos à hora de ponta. Correria habitual quando Surya, o Deus do Sol, ri às gargalhadas. Agradeço a Nataraja, o Deus das Artes e das Danças, por ter conseguido negociar com Surya, cerca de duas dezenas de pessoas. Nada mau, tendo em conta a conjuntura. Houve até alguém que disse que era dia de ensaio corrido.
Já na pele de João de Sousa, ou quase, reparo que a faixa do fato do outro João de Sousa cai, ficando pendurada na parte de trás das calças. Situação embaraçosa que me fez desviar o olhar. Confesso que foi difícil disfarçar a vontade de rir.
E quando Luisa perguntava- "é a primeira vez que vem ao Porto"- e João de Sousa respondia "é, é a primeira vez e estou muito contente com a cidade, pensava que iria ser mal recebido mas afinal estou encantado, é encantodora"- reparo numa velhota, de tamanho considerável e com dificuldade de locomoção, a retirar-se perseguida pelo marido. Estava na hora de preparar a janta, sei de fonte fidedigna. O que é perfeitamente compreensível, afinal não deve ser fácil manter tamanha estrutura física.
A hora e quarenta passou depressa. Depressa arrumámos o cenário, o guarda-roupa, os adereços. E depressa nos sentámos à mesa, para partilhar, não só o choco frito mas também as diversas incidências. À saida, do outro lado do asfalto do Teatro à beira da estrada, um cavalo, uma égua e um potro despediam-se de nós. E lá ao fundo, sem que fosse necessário desviar o olhar, Surya e Nataraja estavam de mãos dadas junto ao Mar. Mais do que a esperança de olhar o Mar, passei a imaginar-me, a imaginar-nos, eu e os meus amigos do Teatro, de frente para ele, a partilhar os desenhos que Surya e Nataraja coloriam em tons laranja, em frente à Praia de Alfarim, ao mesmo tempo que os pescadores arrastavam as redes como podiam, sem tirar os pés da areia. Os mesmos pescadores que, pelo menos uma vez, me ofereceram peixe. Disseram-me para fritar as cavalas. Assim fiz, e regalai-me juntamente com a Sofia. Em Portugal as cavalas, no limite, serão aproveitadas na indústria de conservas. No Japão é um peixe apreciadíssimo, seja cozinhado ou crú (sashimi). Creio que foi nesse mesmo dia que apanharam, na rede, uma tartaruga quatro vezes maior do que a mesa da sineta e do cinzeiro que faz conjunto com o nosso cenário. Sopa de tartaruga é uma delícia, alguém anunciou. Felizmente que, da mesma forma que me deram cavalas, ofereceram mais um tempo de vida aquele belo quelônio, talvez por ser dos poucos répteis verdadeiramente amados no planeta. Espero que a tartaruga perdida tenha encontrado o caminho de volta. Já nós, só com a orientação do Mouzinho, pelos caminhos que só ele conhece, conseguimos chegar à Vasco da Gama. Havia longas filas na portagem. O tabuleiro da ponte estava carregado de luzes vermelhas. Diria que quase tantas, quantas as canções que se escutavam dentro e, certamente, fora da camioneta do Teatro, filtradas pelas belas gargantas da trupe. Chegámos ao ponto de partida. Dirigi-me para casa, fazendo porém um desvio, antes que o dia especial acabasse, para dizer à minha mãe que tinha visto Surya e Nataraja de mãos dadas, no Mar.



4 comentários:

  1. Mas que viagem tão encantadora e que imaginação tão fértil.... E para quem esteve lá, ao ler o texto, embarca certamente na "aventura" desse domingo que se transformou num domingo diferente.
    Margarida

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  2. Uau!!!! Isto sim é poesia pura, é saber observar e sentir... e está uma escrita linda... sinceramente adorei ler este teatro à beira da estrada.
    Já conheço o local à muito tempo mas só agora percebi exatamente o que senti quando lá cheguei pela 1ª vez:«Se estivesse na América, diria que tinhamos chegado a um qualquer motel na Route 66.»
    Abração
    Mouzinho

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  3. Poeta é poeta e está tudo dito, e eu que fiquei desanimada com as poucas pessoas na sala e o casal que saíu a meio para tratar da janta e só arrebitei um pouco com o choco frito. Vil e materialista que sou não reparei no Deus do Sol e na Deusa das Artes a cochicharem segredos e a dourarem-nos o dia. Quando pensar que os meus dias às vezes são cinzentos ou como dizia o poeta Manuel Bandeira "Quando de noite me der vontade de me matar" em vez de me ir embora para Pasárgada como aconselha o poeta irei para Algeruz localidade perdida no ecosistema com um burro e uma égua e uma senhora forte que só pensa na janta... e chamarei o meu amigo Jorge que esse tem um acordo com os deuses e de certeza vai salvar-me o dia. Aquele abraço que não dispenso ISILDA

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  4. Esta crónica está magnifica! Fico com a sensação de vos ter acompanhado de perto. Vais a todos os pormenores. Há que ter pensamento positivo e apreciar os pequenos pormenores da vida. Viva os deuses do sol e das artes e danças!
    Já estou a aguardar pela próxima crónica, mas com a vantagem de ter estado presente em parte da tua viagem com as tuas várias famílias por terras de Santa Iria da Azoia. Cristina

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