terça-feira, 25 de maio de 2010

O Palco

A força de uma vida a formar-se no dia a dia, que parte e que fica. Para de novo partir. Para de novo ficar. Assim amanhece a rotina que nunca o é. Que nunca o foi. Que jamais o será... Porque o Palco será como as arvores. Ficará de pé, ainda que de raízes seja, por que delas nascerá um novo empenho, nova entrega e renovada alma.
Reinaldo Serrano in Globos de Ouro 2010, prémio mérito e excelência a Artur Agostinho.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Ensaio sobre um sonho

O miúdo partilhou o quarto com o irmão, até aos treze anos. Na verdade partilhou 2 quartos, cada qual em casas diferentes. Até aos dez anos, viveram junto à serra. Depois, até aos treze, na cidade. Foi aqui, na cidade, que o miúdo teve de mudar de quarto. Não por que quis, mas por que as circunstâncias assim o exigiram. O irmão, nesta altura com dezassete anos, iria ser pai dentro de seis meses. O casamento do irmão havia de se realizar à pressa, um mês após o anúncio da gravidez. Ninguém poderia sequer imaginar que a futura cunhada estava grávida, como se esta tamanha maravilha na natureza constitui-se a figura de pecado capital. Eles casaram em Janeiro. O bebé viria a nascer no início de Julho, perto das vinte horas. O miúdo jogava à bola como sempre fazia de manhã à noite. A bisavó chamou-o da varanda, usando o habitual e afectuoso diminutivo. O miúdo atendeu à chamada pensando que estava na hora do jantar. Ao chegar junto do prédio, a bisavó anunciou-lhe que a sobrinha tinha nascido. Ele sorriu, pensando que a notícia era duplamente boa. A sobrinha tinha nascido e que ainda não estava na hora do regresso a casa o significava poder continuar o jogo da bola. Por esta altura, o quarto onde dormia era o quarto de férias, o da casa junto à serra. Outrora o primeiro dos dois quartos que partilhara com o irmão. As aulas já tinham terminado. Já tinha terminado esse difícil período de seis meses em que teve de ceder, não apenas o seu quarto, mas também a companhia do irmão, à sua cunhada. Sentiu-se trocado, subestimado, usurpado. Durante seis meses teve de voltar a dormir no quarto dos pais, num sofá cama apertado, encostado junto à janela.
O quarto que dividia com o irmão deixou de lhe pertencer, pertencendo-lhe. O canto direito do quarto. A sua cama estava encostada à parede, à sua parede repleta de posters geometricamente colocados. Tanta dedicação. O maior dos posters era dos Kiss, que haviam lançado recentemente o sucesso “I was made for loving you”. Um canto do quarto construído ao pormenor, do qual teve de se afastar abruptamente. Sentiu perda, subestimação, usurpação. Teve de o ceder ao novo elemento da família, que viriam a ser dois, data limite para o voltar a recuperar, ainda que as férias do verão servissem de fronteira, não recuperando, porém, jamais a partilha do espaço com o irmão. Momentos difíceis que não lhe escapariam do subconsciente, ainda que fosse pelo mais nobre dos motivos, o Amor. O Amor do irmão e da cunhada que viria a resultar no nascimento de uma bebé linda. O miúdo foi afastado, abruptamente, do seu espaço, colocado num canto, como se fosse o menos importante da família, depois de tanto se ter dedicado a ela. Não queremos que te vás embora, mas o que temos para ti é aquele canto, sentiu. De tal forma que, vinte e sete depois, estas memórias lhe serviriam de base para um sonho revelador. Os sonhos que são o espelho do subconsciente. O cenário desse devaneio nocturno foi a casa, o seu quarto, cada canto desse lar. Ao chegar, no regresso a casa, deparou que estava ocupada por gente sinistra, deformada, enferma. Como se não bastasse a simples usurpação do lar que lhe pertencia, cada canto da casa estava preenchido de decadência. Uma das pessoas, uma mulher com quem nunca havia falado, tinha as pálpebras do olho direito suturadas, horrivelmente suturadas. Era a mulher do salteador. Cada qual em camas diferentes com parceiros descartáveis. Eles e os amigos que entretanto iam invadindo a casa. Como que em “Feios, Porcos e Maus” filme de Ettore Scola, 1976. Um sonho horrível, um pesadelo, ao deparar-se com estas imagens, estar dentro delas, e ainda mais sobrando-lhe apenas um canto. Ainda que fosse um canto, como já lhe havia acontecido realmente no passado e mesmo que desta vez o motivo não fosse nobre, mas nunca partilhado com gente tão sinistra quanto esta que lhe surgiu no sonho. A visão de um lar desfeito, entregue à degradação, depois de tanta dedicação.
O miúdo, agora adulto, acordou. Acordou angustiado. Fazer o luto do sonho, é o primeiro passo. Construir um novo lar é o caminho seguinte. Primeiro é preciso encontrar o cenário mais adequado. Depois é preciso vivê-lo. A sós, em paz. Viver cada canto em partilha com quem lhe faz realmente sentido. Olhando em frente, rumo a si mesmo, à sua mais profunda natureza. I was made for loving you. Kiss.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Na medida do que sinto

Pormenores de nós. Cada cena. Cada beijo. Cada olhar. Cada sorriso. Cada palavra. Cada lágrima. Cada peça que constitui o puzzle que somos. O que mais quero é terminar o puzzle, apesar de saber que nunca vou conseguir. Ter-nos por inteiro. E tanto de nós na caixa. Fria por fora. Fervilhante por dentro. Um vulcão adormecido pelas circunstâncias. Um espaço reduzido, sendo enorme. Valor. Nada mais valioso que cada pormenor. Estar com a pessoa certa no lugar certo, palavras que te pertencem. O Palco. A verdade. Tudo numa caixa que cheira a azul. Cheiro de luz. Cheiro das lágrimas que não param de cair. Tens-me puro, as lágrimas são fruto da luz que tenho dentro. Amor. Pormenores de nós que fazem parte do que sou. Farão sempre parte do que sou. Sou Amor. Sou tu. Ocupam tudo o que vejo, o que sinto, o que cheiro, o que oiço. É quente o que oiço. I love you so... canta o ipod. Lembras-te quando dancámos partilhando o ipod, com o monte lá ao longe? O conteúdo da caixa circula em mim como o sangue. Um espaço exclusivo como cada veia que liga as partes do meu corpo, que é teu. Como se o Mundo fosses tu. Tudo tão simples. Tão próximo. Tão lindo. Tão à mão. Tão distante. O pormenor da caixa. Sou uma caixa. És uma caixa. Ninguém, para além de nós, sabe o que guarda. O seu conteúdo. O significado de cada objecto. Das peças que estão por juntar. O espaço da caixa ocupado por cada afecto. Afectos que começámos a trocar onde a realidade é mais verdadeira. Afectos que são tudo. Que mais há de importante que os afectos? O cheiro azul está tão intenso. Alucino agora mesmo. A caixa deixou de existir. Estou contigo de mão dada. Estamos livres. Sorrimos. Somos unos. As cores do cenário cantam em cada passo que damos, passos de crianças que somos. O sol brilha, sorrindo. O mar tem peixes enamorados. As nuvens beijam-se. Estamos de mãos dadas, saltitando de felicidade. Um beijo agora. Outro e outro. Sorrisos. Dá-me esse sorriso de lingua no meio dos dentes. Deixo de alucinar. Está tudo na caixa. Até o que alucino. Tudo na caixa. Tudo o que partilhámos e os sonhos. Caixa, o que esconde, sinónimo de amor. Cada pormenor do que guarda saido do que és... Amor. Amáste-me hoje, sem sequer nos tocarmos. Sonho contigo a cada instante. Como que tudo fosses tu. O Mundo. Ter o Mundo? O Puzzle. Quero juntar cada peça. Fazer do puzzle, nós. Quero terminar o puzzle, mesmo que tenhas ficado com algumas peças. Vou termina-lo, mesmo sabendo que não vou conseguir. Vou termina-lo por que, lá está, és minha na medida em que te sinto. Um sonho achar que o que se sente é tudo, que nada mais interessa. Um sonho sim, mas um sonho pelo qual não desistirei de lutar. Sentir é tudo. Agora. Para sempre. Até sempre, Luz. Um beijo, na medida do que sinto...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Dhanêbade

No sábado fui jantar aquele nepalês. A nossa mesa estava vazia, estando cheia. Cheia do teu cheiro. O Eme reparou que não estavas comigo. Talvez por isso me tenha conduzido para a mesa que restava. Um curto percurso iluminado pelo teu odor. Esse de que sinto falta. Que me torna lúbrico, inebriado, arroubado. Talvez uma dhaulagiri sigada me alucine, pensei. Como se fosse possível que o paladar maravilhoso daquela chamuça de frango acompanhada por uma Thon tão fresca como o topo dos Himalaias pudesse fazer-te aparecer diante de mim. Repeti a dose como da nossa vez. O menu foi o mesmo. As thon é que forem em maior número. O jantar passou rápido. Três horas de conversa em muito boa companhia, mas sempre contigo em mim. Segui depois para a Comuna. O teatro de pesquisa completava 38 belos anos de arte. Nada melhor, depois de um belo jantar, senão festejar o teatro. Foi como se estivesse em casa. Um regozijo de família, mesmo não conhecendo ninguém. Gosto de sítios onde não conheço ninguém. Uma festa preparada ao momento. Fiquei a saber que, em Setembro, a Comuna promove um imperdível workshop de três meses. Quis fazê-lo em Fevereiro mas não pude por boas razões. O meu grupo, ou melhor, o grupo de teatro de que faço parte estrearia a nova peça de Brecht e Pirandello no início de Março. Uma festa como daquelas que gosto. Sem grandes cenários. Onde ninguém é igual ao do lado. Gosto de gente diferente. Que escapou à linha de montagem. Com saber alternativo. Dançámos o tempo todo. De cerveja na mão. Ou, de thon na mão se ainda estivéssemos no restaurante. Para ser perfeito, apesar de estares em mim, era lá estares. Precisei de te beijar prolongadamente em cada canto daquele espaço. Como se de adolescentes nos tratássemos, como daquela vez. Qual rei a cavalo. Queria tanto que ali estivesses para te beijar, dançar contigo, te abraçar, cheirar, rir, tocar-te, povoar de nós cada canto. Fi-lo de certa forma. Se estás em mim então fi-lo. O que está em mim existe. É real. Então fi-lo. Foi uma noite daquelas que guardo em mim. Feliz. Em boa companhia, por dentro e por fora. Dhanêbade por me sentir assim. Dormi poucas horas. Esperava-me um dia de trabalho. Um dia longo. Difícil. Andei às voltas com um telefone novo que não tocava. Pensei até que este acessório, como todos, dispensável, teria os dias contados. Afinal, para que serve se não tocava. Finalmente tocou. Mais do que uma vez, até. Mas nunca foste tu. Uma das chamadas que recebi foi da minha mãe que me quis beijar por ser seu filho. Deveria ter sido eu a ligar. Afinal o dia era da mãe e não do filho. Mas que interessa isso. O que é determinante é aquilo que representamos um para o outro. Os dias são apenas aquilo que fazemos deles e não o que é suposto fazer-se deles. Somos aquilo que sentimos. O que sinto é uma luz de cor azul.
PS: Eme, dhanêbade pelo convite que me fizeste para visitar o teu idílico Nepal. Prometo-te que um dia irei.

domingo, 2 de maio de 2010

Três ou quatro coisas

-Achas que eu poderia ser um bom pai?
Não quero dizer pai biológico... refiro-me a outro tipo de pai. Um bom pai, sabes como é.
-Um bom pai?
-Sim. Um homem com cabeça, coração e alma. Um homem que seja capaz de ouvir, guiar e respeitar uma criança, e de não sufocar nela os seus próprios defeitos. Alguém que um filho não só ame por ser seu pai, mas que admire pela pessoa que é. Alguém com quem se queira parecer.
-Por que me pergunta isso? Pensava que o senhor não acreditava no casamento nem na familia. O jugo e tudo isso, lembra-se?
- Olhe, tudo isso são caganifâncias. O casamento e a familia não são mais do que aquilo que fazemos deles. Sem isso, não são mais que uma caterva de hipocrisias. Ninharias e palavreado... Esta vida vale ser vivida por três ou quatro coisas, e o resto é adubo para o campo.
Carlos Ruiz Zafón in A sombra do vento, 2004.