O miúdo partilhou o quarto com o irmão, até aos treze anos. Na verdade partilhou 2 quartos, cada qual em casas diferentes. Até aos dez anos, viveram junto à serra. Depois, até aos treze, na cidade. Foi aqui, na cidade, que o miúdo teve de mudar de quarto. Não por que quis, mas por que as circunstâncias assim o exigiram. O irmão, nesta altura com dezassete anos, iria ser pai dentro de seis meses. O casamento do irmão havia de se realizar à pressa, um mês após o anúncio da gravidez. Ninguém poderia sequer imaginar que a futura cunhada estava grávida, como se esta tamanha maravilha na natureza constitui-se a figura de pecado capital. Eles casaram em Janeiro. O bebé viria a nascer no início de Julho, perto das vinte horas. O miúdo jogava à bola como sempre fazia de manhã à noite. A bisavó chamou-o da varanda, usando o habitual e afectuoso diminutivo. O miúdo atendeu à chamada pensando que estava na hora do jantar. Ao chegar junto do prédio, a bisavó anunciou-lhe que a sobrinha tinha nascido. Ele sorriu, pensando que a notícia era duplamente boa. A sobrinha tinha nascido e que ainda não estava na hora do regresso a casa o significava poder continuar o jogo da bola. Por esta altura, o quarto onde dormia era o quarto de férias, o da casa junto à serra. Outrora o primeiro dos dois quartos que partilhara com o irmão. As aulas já tinham terminado. Já tinha terminado esse difícil período de seis meses em que teve de ceder, não apenas o seu quarto, mas também a companhia do irmão, à sua cunhada. Sentiu-se trocado, subestimado, usurpado. Durante seis meses teve de voltar a dormir no quarto dos pais, num sofá cama apertado, encostado junto à janela.
O quarto que dividia com o irmão deixou de lhe pertencer, pertencendo-lhe. O canto direito do quarto. A sua cama estava encostada à parede, à sua parede repleta de posters geometricamente colocados. Tanta dedicação. O maior dos posters era dos Kiss, que haviam lançado recentemente o sucesso “I was made for loving you”. Um canto do quarto construído ao pormenor, do qual teve de se afastar abruptamente. Sentiu perda, subestimação, usurpação. Teve de o ceder ao novo elemento da família, que viriam a ser dois, data limite para o voltar a recuperar, ainda que as férias do verão servissem de fronteira, não recuperando, porém, jamais a partilha do espaço com o irmão. Momentos difíceis que não lhe escapariam do subconsciente, ainda que fosse pelo mais nobre dos motivos, o Amor. O Amor do irmão e da cunhada que viria a resultar no nascimento de uma bebé linda. O miúdo foi afastado, abruptamente, do seu espaço, colocado num canto, como se fosse o menos importante da família, depois de tanto se ter dedicado a ela. Não queremos que te vás embora, mas o que temos para ti é aquele canto, sentiu. De tal forma que, vinte e sete depois, estas memórias lhe serviriam de base para um sonho revelador. Os sonhos que são o espelho do subconsciente. O cenário desse devaneio nocturno foi a casa, o seu quarto, cada canto desse lar. Ao chegar, no regresso a casa, deparou que estava ocupada por gente sinistra, deformada, enferma. Como se não bastasse a simples usurpação do lar que lhe pertencia, cada canto da casa estava preenchido de decadência. Uma das pessoas, uma mulher com quem nunca havia falado, tinha as pálpebras do olho direito suturadas, horrivelmente suturadas. Era a mulher do salteador. Cada qual em camas diferentes com parceiros descartáveis. Eles e os amigos que entretanto iam invadindo a casa. Como que em “Feios, Porcos e Maus” filme de Ettore Scola, 1976. Um sonho horrível, um pesadelo, ao deparar-se com estas imagens, estar dentro delas, e ainda mais sobrando-lhe apenas um canto. Ainda que fosse um canto, como já lhe havia acontecido realmente no passado e mesmo que desta vez o motivo não fosse nobre, mas nunca partilhado com gente tão sinistra quanto esta que lhe surgiu no sonho. A visão de um lar desfeito, entregue à degradação, depois de tanta dedicação.
O miúdo, agora adulto, acordou. Acordou angustiado. Fazer o luto do sonho, é o primeiro passo. Construir um novo lar é o caminho seguinte. Primeiro é preciso encontrar o cenário mais adequado. Depois é preciso vivê-lo. A sós, em paz. Viver cada canto em partilha com quem lhe faz realmente sentido. Olhando em frente, rumo a si mesmo, à sua mais profunda natureza. I was made for loving you. Kiss.
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