Choravam a rir. A cena era dramática, provavelmente a mais dramática da peça.
Explicaram-me no fim que o imparável riso se devia à acção. A acção do momento em que o Artur tira a roupa à Lisa, pouco depois do actor, Artur, abandonar o seu personagem António Serra. A acção, afirmaram, convidava o simpático casal a sair da sala, uma vez que Artur despia à força a sua amante. Ela estava em risco de nudez. Para além de que tinham problemas a resolver. A sós, sem público na sala, estariam melhor. Auto-sugestão que os fez chorar a rir. Eu vi. Faltou-me jogo de cintura mais forte. Se não desfiz a acção, a verdade é que também não tive coragem, no exacto momento da acção, de lhes perguntar por que riam. Podia tê-lo feito no momento em que me dirijo, em que o Artur se dirige ao público para que sejam testemunhas da vida real, para que vejam a vida real e não uma peça de teatro qualquer, apesar da peça em questão ter sido escrita pelo prémio nobel Luigi Pirandello. Depois do espectáculo, o senhor que se ria perdidamente confessou-me que esteve quase a intervir nesse momento em que me dirigia, em que o Artur se dirigia ao público. Pena não o ter feito. Não me explicou por que apenas ficou pela intenção. Para não alterar o guião? Pena não lhe ter perguntado, no momento da acção, por que tanto se ria. No limite, daria para perceber até que ponto era a minha disponibilidade para o personagem. Ou seja, se nesse momento seria o Artur a responder ou o Jorge. Seria o Jorge a alterar o Guião ou o Artur a revelar nova faceta? Um momento verdadeiramente importante pela sua singularidade mas que soube a pouco por ter sido castrado pelo casal que não passou da mera intenção de intervir, mas também por mim próprio ou pelo personagem actor Artur por não termos ido mais além. Quero, um dia, ser capaz de me esquecer de mim, de me emprestar não apenas parcialmente ou por breves instantes aos personagens, mas de me emprestar por completo. Tenho de lhes emprestar tudo o que tenho, toda a minha história, toda a minha verdade para que tenham a vida que merecem durante o exacto momento que é suposto estarem vivos. Quero, preciso de continuar a praticar esta arte que tanto me fascina. No teatro, sinto-me mais perto de mim.
Noutra circunstância, lembro-me que também eu chorei e ri, ao mesmo tempo, quase sem dar por isso. Afinal, era realmente Alta Comédia, da melhor, num dia igual ao outro, apesar de ser véspera de Pascoa, num dia em que vi a melhor peça de teatro de sempre em Portugal, se é que a memória não me atraiçoa. Chorei e ri com a história, com o personagem que Nuno Lopes representava notavelmente na sala estúdio do Teatro que foi inaugurada há 164 anos aquando do 27º aniversário da princesa.
É isto, Alta Comédia. Quando dois sentimentos tão dispares se sucedem sem que haja tempo para se pensar nisso. Chorar porque a cena é dramática. Preciso de sublinhar que a cena pode ser dramática, ou o que quiser, no papel mas se o actor não estiver disponível o personagem não tem conflito, não tem verdade, logo não existe e tudo se perde, por que se perdem as lágrimas ou o sorriso do espectador.
Sim, sublinho que chorei. E quando as lágrimas me caíam, soltou-se um sorriso tão espontâneo que passei a perceber o que é realmente Alta Comédia. Mas sobretudo fiquei feliz por ter percebido que estava entregue a mim mesmo. A atenção estava focalizada no que queria. Até parecia que estava a olhar a realidade. Ou melhor, eu estava a olhar a realidade. A Verdade estava no meio dos personagens. Na plateia está o público. A cena foi-me buscar à plateia. Claro que sim. Aquela história tinha mais do que os dois personagens visíveis. Eu poderia ser um vizinho coscuvilheiro que havia decidido esconder-se atrás da janela, do lado de fora da casa no meio dos arbustos, a espiar tão inesperada visita do irmão de Jack, quinze anos depois de o ter abandonado. Podia ser isto ou aquilo, por que passei a fazer parte daquela história mais do que de mim mesmo. Eu fazia parte daquela história por que estava entregue a mim mesmo. Estava livre. O Homem livre é aquele que aprende a estar consigo mesmo, ou seja, a estar só mesmo que acompanhado. Eu estava só, mesmo estando rodeado de gente. Tinha decidido ir ao teatro sem companhia. Sem bilhete para um espectáculo já esgotado até final da temporada. Como em Londres, há sempre uma reserva que não se confirma. Felizmente. E Tudo fluiu. Eu, as minhas lágrimas, o meu sorriso. Pena foi quando tive de me voltar para fora, para a ficção, no exacto momento em que as luzes acenderam. Os personagens tinham saído de cena. O público fez-se sentir. As luzes foram fronteira entra a realidade e a ficção. A realidade do palco. A ficção da plateia. Preciso de voltar à realidade sempre que possível. Sim, por que quero, preciso de continuar a ver teatro. Na plateia, sinto-me mais perto de mim tal e qual como se estivesse no palco.
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