quarta-feira, 28 de abril de 2010

Eu

Quando me olho ao espelho a imagem que vejo surpreende-me. Vejo o meu corpo alterado em relação ao que sinto. Em cada novo olhar a distância assume-se. Pareço diferente. Faz lembrar-me o que se passou, há uns tempos atrás, no reencontro com um velho amigo que, por essa altura, já não via há mais de uma década e que de repente resolveu assinalar a sua existência. Ele esteve na plateia no dia da Mostra de Teatro. Desde que reapareceu temos, quando calha, dividido o tempo entre a conversa e uma quantidade assinalável de sashimi de salmão com mais uns nigiris ou uns makis para substituir o gengibre. Por essa ocasião, depois de ter dado sinal de si, quisemos comemorar tamanha ousadia desse anúncio de que estava vivo bebendo as cervejas necessárias. Encontramo-nos junto ao rio num dia de sol. Quando chegou, depois de mim, considerei aquela figura que se me deparava, não sendo a dele. Mas era. Percebi pelo semblante. Os anos tinham passado. As marcas do tempo eram visíveis. Nem sempre são tão visíveis. Não nos damos conta das transformações permanentes do nosso corpo promovidas pelo tempo. Ou se damos, nada se compara quando a distância trata de se aliar ao tempo. Quanto maior, mais notável. Se não me olhasse ao espelho nos próximos dez anos, que reacção teriam os meus olhos ao voltarem a cruzar-se com o meu reflexo? O tempo devora-nos, como se fossemos cegos, tal e qual a água faz com uma rocha. Cada vez que a olhamos parece igual sem nunca o ser. A erosão é lenta. Nada é igual em cada instante. A permanência não existe. Tudo está em mutação. Eu sou parte da mudança. Do todo. O Todo que é enorme, e que oculta meu corpo. Os milhões de corpos somam-se. Que vale apenas um só? A minha existência física no contexto da história do mundo é insignificante. A história que está longe de estar completa ou bem contada. Sou insignificante no todo. Não existo, existindo. Se fechar o plano, apareço ainda minúsculo. Se o fechar ainda mais no espelho que olho deparo com o corpo que, sendo meu, surpreende-me. Vejo-o diferente relativamente ao que sinto. Em cada novo olhar a distância assume-se. Não significa que não goste do que vejo. Gosto até cada vez mais. E gosto por que é meu lado de fora. É o que me envolve. O que me dá forma. Cada vez que o olho parece-me diferente. Mas não por que está a envelhecer a cada instante mas apenas por que reparo menos nos contornos que o definem, na sua tonalidade que não é única, nos acessórios que o decoram. O corpo serve apenas de suporte ao que realmente sou. É o suporte de mim mesmo. Um mero embrulho. A marioneta que manipulo conforme posso. Que empresto a cada personagem que faço, dentro ou fora do palco. Um corpo que seria diferente se tivesse surgido do outro lado do Mundo. Um corpo que sendo importante não é essencial. Se perder parte do corpo, o que sou permanece, independentemente de onde estou. O que nunca poderá acontecer é perder-me de mim mesmo. Por isso, preciso saber cada vez mais de mim a cada instante. Ir sempre mais fundo. Percorrer-me seguindo-me. Olhando sempre o foco da lanterna. A lanterna que não me deixa perder. Que trarei dentro de mim. Não sou uma imagem. Sou simplesmente… EU.

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