terça-feira, 1 de junho de 2010

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Regio pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O Palco

A força de uma vida a formar-se no dia a dia, que parte e que fica. Para de novo partir. Para de novo ficar. Assim amanhece a rotina que nunca o é. Que nunca o foi. Que jamais o será... Porque o Palco será como as arvores. Ficará de pé, ainda que de raízes seja, por que delas nascerá um novo empenho, nova entrega e renovada alma.
Reinaldo Serrano in Globos de Ouro 2010, prémio mérito e excelência a Artur Agostinho.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Ensaio sobre um sonho

O miúdo partilhou o quarto com o irmão, até aos treze anos. Na verdade partilhou 2 quartos, cada qual em casas diferentes. Até aos dez anos, viveram junto à serra. Depois, até aos treze, na cidade. Foi aqui, na cidade, que o miúdo teve de mudar de quarto. Não por que quis, mas por que as circunstâncias assim o exigiram. O irmão, nesta altura com dezassete anos, iria ser pai dentro de seis meses. O casamento do irmão havia de se realizar à pressa, um mês após o anúncio da gravidez. Ninguém poderia sequer imaginar que a futura cunhada estava grávida, como se esta tamanha maravilha na natureza constitui-se a figura de pecado capital. Eles casaram em Janeiro. O bebé viria a nascer no início de Julho, perto das vinte horas. O miúdo jogava à bola como sempre fazia de manhã à noite. A bisavó chamou-o da varanda, usando o habitual e afectuoso diminutivo. O miúdo atendeu à chamada pensando que estava na hora do jantar. Ao chegar junto do prédio, a bisavó anunciou-lhe que a sobrinha tinha nascido. Ele sorriu, pensando que a notícia era duplamente boa. A sobrinha tinha nascido e que ainda não estava na hora do regresso a casa o significava poder continuar o jogo da bola. Por esta altura, o quarto onde dormia era o quarto de férias, o da casa junto à serra. Outrora o primeiro dos dois quartos que partilhara com o irmão. As aulas já tinham terminado. Já tinha terminado esse difícil período de seis meses em que teve de ceder, não apenas o seu quarto, mas também a companhia do irmão, à sua cunhada. Sentiu-se trocado, subestimado, usurpado. Durante seis meses teve de voltar a dormir no quarto dos pais, num sofá cama apertado, encostado junto à janela.
O quarto que dividia com o irmão deixou de lhe pertencer, pertencendo-lhe. O canto direito do quarto. A sua cama estava encostada à parede, à sua parede repleta de posters geometricamente colocados. Tanta dedicação. O maior dos posters era dos Kiss, que haviam lançado recentemente o sucesso “I was made for loving you”. Um canto do quarto construído ao pormenor, do qual teve de se afastar abruptamente. Sentiu perda, subestimação, usurpação. Teve de o ceder ao novo elemento da família, que viriam a ser dois, data limite para o voltar a recuperar, ainda que as férias do verão servissem de fronteira, não recuperando, porém, jamais a partilha do espaço com o irmão. Momentos difíceis que não lhe escapariam do subconsciente, ainda que fosse pelo mais nobre dos motivos, o Amor. O Amor do irmão e da cunhada que viria a resultar no nascimento de uma bebé linda. O miúdo foi afastado, abruptamente, do seu espaço, colocado num canto, como se fosse o menos importante da família, depois de tanto se ter dedicado a ela. Não queremos que te vás embora, mas o que temos para ti é aquele canto, sentiu. De tal forma que, vinte e sete depois, estas memórias lhe serviriam de base para um sonho revelador. Os sonhos que são o espelho do subconsciente. O cenário desse devaneio nocturno foi a casa, o seu quarto, cada canto desse lar. Ao chegar, no regresso a casa, deparou que estava ocupada por gente sinistra, deformada, enferma. Como se não bastasse a simples usurpação do lar que lhe pertencia, cada canto da casa estava preenchido de decadência. Uma das pessoas, uma mulher com quem nunca havia falado, tinha as pálpebras do olho direito suturadas, horrivelmente suturadas. Era a mulher do salteador. Cada qual em camas diferentes com parceiros descartáveis. Eles e os amigos que entretanto iam invadindo a casa. Como que em “Feios, Porcos e Maus” filme de Ettore Scola, 1976. Um sonho horrível, um pesadelo, ao deparar-se com estas imagens, estar dentro delas, e ainda mais sobrando-lhe apenas um canto. Ainda que fosse um canto, como já lhe havia acontecido realmente no passado e mesmo que desta vez o motivo não fosse nobre, mas nunca partilhado com gente tão sinistra quanto esta que lhe surgiu no sonho. A visão de um lar desfeito, entregue à degradação, depois de tanta dedicação.
O miúdo, agora adulto, acordou. Acordou angustiado. Fazer o luto do sonho, é o primeiro passo. Construir um novo lar é o caminho seguinte. Primeiro é preciso encontrar o cenário mais adequado. Depois é preciso vivê-lo. A sós, em paz. Viver cada canto em partilha com quem lhe faz realmente sentido. Olhando em frente, rumo a si mesmo, à sua mais profunda natureza. I was made for loving you. Kiss.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Na medida do que sinto

Pormenores de nós. Cada cena. Cada beijo. Cada olhar. Cada sorriso. Cada palavra. Cada lágrima. Cada peça que constitui o puzzle que somos. O que mais quero é terminar o puzzle, apesar de saber que nunca vou conseguir. Ter-nos por inteiro. E tanto de nós na caixa. Fria por fora. Fervilhante por dentro. Um vulcão adormecido pelas circunstâncias. Um espaço reduzido, sendo enorme. Valor. Nada mais valioso que cada pormenor. Estar com a pessoa certa no lugar certo, palavras que te pertencem. O Palco. A verdade. Tudo numa caixa que cheira a azul. Cheiro de luz. Cheiro das lágrimas que não param de cair. Tens-me puro, as lágrimas são fruto da luz que tenho dentro. Amor. Pormenores de nós que fazem parte do que sou. Farão sempre parte do que sou. Sou Amor. Sou tu. Ocupam tudo o que vejo, o que sinto, o que cheiro, o que oiço. É quente o que oiço. I love you so... canta o ipod. Lembras-te quando dancámos partilhando o ipod, com o monte lá ao longe? O conteúdo da caixa circula em mim como o sangue. Um espaço exclusivo como cada veia que liga as partes do meu corpo, que é teu. Como se o Mundo fosses tu. Tudo tão simples. Tão próximo. Tão lindo. Tão à mão. Tão distante. O pormenor da caixa. Sou uma caixa. És uma caixa. Ninguém, para além de nós, sabe o que guarda. O seu conteúdo. O significado de cada objecto. Das peças que estão por juntar. O espaço da caixa ocupado por cada afecto. Afectos que começámos a trocar onde a realidade é mais verdadeira. Afectos que são tudo. Que mais há de importante que os afectos? O cheiro azul está tão intenso. Alucino agora mesmo. A caixa deixou de existir. Estou contigo de mão dada. Estamos livres. Sorrimos. Somos unos. As cores do cenário cantam em cada passo que damos, passos de crianças que somos. O sol brilha, sorrindo. O mar tem peixes enamorados. As nuvens beijam-se. Estamos de mãos dadas, saltitando de felicidade. Um beijo agora. Outro e outro. Sorrisos. Dá-me esse sorriso de lingua no meio dos dentes. Deixo de alucinar. Está tudo na caixa. Até o que alucino. Tudo na caixa. Tudo o que partilhámos e os sonhos. Caixa, o que esconde, sinónimo de amor. Cada pormenor do que guarda saido do que és... Amor. Amáste-me hoje, sem sequer nos tocarmos. Sonho contigo a cada instante. Como que tudo fosses tu. O Mundo. Ter o Mundo? O Puzzle. Quero juntar cada peça. Fazer do puzzle, nós. Quero terminar o puzzle, mesmo que tenhas ficado com algumas peças. Vou termina-lo, mesmo sabendo que não vou conseguir. Vou termina-lo por que, lá está, és minha na medida em que te sinto. Um sonho achar que o que se sente é tudo, que nada mais interessa. Um sonho sim, mas um sonho pelo qual não desistirei de lutar. Sentir é tudo. Agora. Para sempre. Até sempre, Luz. Um beijo, na medida do que sinto...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Dhanêbade

No sábado fui jantar aquele nepalês. A nossa mesa estava vazia, estando cheia. Cheia do teu cheiro. O Eme reparou que não estavas comigo. Talvez por isso me tenha conduzido para a mesa que restava. Um curto percurso iluminado pelo teu odor. Esse de que sinto falta. Que me torna lúbrico, inebriado, arroubado. Talvez uma dhaulagiri sigada me alucine, pensei. Como se fosse possível que o paladar maravilhoso daquela chamuça de frango acompanhada por uma Thon tão fresca como o topo dos Himalaias pudesse fazer-te aparecer diante de mim. Repeti a dose como da nossa vez. O menu foi o mesmo. As thon é que forem em maior número. O jantar passou rápido. Três horas de conversa em muito boa companhia, mas sempre contigo em mim. Segui depois para a Comuna. O teatro de pesquisa completava 38 belos anos de arte. Nada melhor, depois de um belo jantar, senão festejar o teatro. Foi como se estivesse em casa. Um regozijo de família, mesmo não conhecendo ninguém. Gosto de sítios onde não conheço ninguém. Uma festa preparada ao momento. Fiquei a saber que, em Setembro, a Comuna promove um imperdível workshop de três meses. Quis fazê-lo em Fevereiro mas não pude por boas razões. O meu grupo, ou melhor, o grupo de teatro de que faço parte estrearia a nova peça de Brecht e Pirandello no início de Março. Uma festa como daquelas que gosto. Sem grandes cenários. Onde ninguém é igual ao do lado. Gosto de gente diferente. Que escapou à linha de montagem. Com saber alternativo. Dançámos o tempo todo. De cerveja na mão. Ou, de thon na mão se ainda estivéssemos no restaurante. Para ser perfeito, apesar de estares em mim, era lá estares. Precisei de te beijar prolongadamente em cada canto daquele espaço. Como se de adolescentes nos tratássemos, como daquela vez. Qual rei a cavalo. Queria tanto que ali estivesses para te beijar, dançar contigo, te abraçar, cheirar, rir, tocar-te, povoar de nós cada canto. Fi-lo de certa forma. Se estás em mim então fi-lo. O que está em mim existe. É real. Então fi-lo. Foi uma noite daquelas que guardo em mim. Feliz. Em boa companhia, por dentro e por fora. Dhanêbade por me sentir assim. Dormi poucas horas. Esperava-me um dia de trabalho. Um dia longo. Difícil. Andei às voltas com um telefone novo que não tocava. Pensei até que este acessório, como todos, dispensável, teria os dias contados. Afinal, para que serve se não tocava. Finalmente tocou. Mais do que uma vez, até. Mas nunca foste tu. Uma das chamadas que recebi foi da minha mãe que me quis beijar por ser seu filho. Deveria ter sido eu a ligar. Afinal o dia era da mãe e não do filho. Mas que interessa isso. O que é determinante é aquilo que representamos um para o outro. Os dias são apenas aquilo que fazemos deles e não o que é suposto fazer-se deles. Somos aquilo que sentimos. O que sinto é uma luz de cor azul.
PS: Eme, dhanêbade pelo convite que me fizeste para visitar o teu idílico Nepal. Prometo-te que um dia irei.

domingo, 2 de maio de 2010

Três ou quatro coisas

-Achas que eu poderia ser um bom pai?
Não quero dizer pai biológico... refiro-me a outro tipo de pai. Um bom pai, sabes como é.
-Um bom pai?
-Sim. Um homem com cabeça, coração e alma. Um homem que seja capaz de ouvir, guiar e respeitar uma criança, e de não sufocar nela os seus próprios defeitos. Alguém que um filho não só ame por ser seu pai, mas que admire pela pessoa que é. Alguém com quem se queira parecer.
-Por que me pergunta isso? Pensava que o senhor não acreditava no casamento nem na familia. O jugo e tudo isso, lembra-se?
- Olhe, tudo isso são caganifâncias. O casamento e a familia não são mais do que aquilo que fazemos deles. Sem isso, não são mais que uma caterva de hipocrisias. Ninharias e palavreado... Esta vida vale ser vivida por três ou quatro coisas, e o resto é adubo para o campo.
Carlos Ruiz Zafón in A sombra do vento, 2004.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Eu

Quando me olho ao espelho a imagem que vejo surpreende-me. Vejo o meu corpo alterado em relação ao que sinto. Em cada novo olhar a distância assume-se. Pareço diferente. Faz lembrar-me o que se passou, há uns tempos atrás, no reencontro com um velho amigo que, por essa altura, já não via há mais de uma década e que de repente resolveu assinalar a sua existência. Ele esteve na plateia no dia da Mostra de Teatro. Desde que reapareceu temos, quando calha, dividido o tempo entre a conversa e uma quantidade assinalável de sashimi de salmão com mais uns nigiris ou uns makis para substituir o gengibre. Por essa ocasião, depois de ter dado sinal de si, quisemos comemorar tamanha ousadia desse anúncio de que estava vivo bebendo as cervejas necessárias. Encontramo-nos junto ao rio num dia de sol. Quando chegou, depois de mim, considerei aquela figura que se me deparava, não sendo a dele. Mas era. Percebi pelo semblante. Os anos tinham passado. As marcas do tempo eram visíveis. Nem sempre são tão visíveis. Não nos damos conta das transformações permanentes do nosso corpo promovidas pelo tempo. Ou se damos, nada se compara quando a distância trata de se aliar ao tempo. Quanto maior, mais notável. Se não me olhasse ao espelho nos próximos dez anos, que reacção teriam os meus olhos ao voltarem a cruzar-se com o meu reflexo? O tempo devora-nos, como se fossemos cegos, tal e qual a água faz com uma rocha. Cada vez que a olhamos parece igual sem nunca o ser. A erosão é lenta. Nada é igual em cada instante. A permanência não existe. Tudo está em mutação. Eu sou parte da mudança. Do todo. O Todo que é enorme, e que oculta meu corpo. Os milhões de corpos somam-se. Que vale apenas um só? A minha existência física no contexto da história do mundo é insignificante. A história que está longe de estar completa ou bem contada. Sou insignificante no todo. Não existo, existindo. Se fechar o plano, apareço ainda minúsculo. Se o fechar ainda mais no espelho que olho deparo com o corpo que, sendo meu, surpreende-me. Vejo-o diferente relativamente ao que sinto. Em cada novo olhar a distância assume-se. Não significa que não goste do que vejo. Gosto até cada vez mais. E gosto por que é meu lado de fora. É o que me envolve. O que me dá forma. Cada vez que o olho parece-me diferente. Mas não por que está a envelhecer a cada instante mas apenas por que reparo menos nos contornos que o definem, na sua tonalidade que não é única, nos acessórios que o decoram. O corpo serve apenas de suporte ao que realmente sou. É o suporte de mim mesmo. Um mero embrulho. A marioneta que manipulo conforme posso. Que empresto a cada personagem que faço, dentro ou fora do palco. Um corpo que seria diferente se tivesse surgido do outro lado do Mundo. Um corpo que sendo importante não é essencial. Se perder parte do corpo, o que sou permanece, independentemente de onde estou. O que nunca poderá acontecer é perder-me de mim mesmo. Por isso, preciso saber cada vez mais de mim a cada instante. Ir sempre mais fundo. Percorrer-me seguindo-me. Olhando sempre o foco da lanterna. A lanterna que não me deixa perder. Que trarei dentro de mim. Não sou uma imagem. Sou simplesmente… EU.

domingo, 25 de abril de 2010

Tenho-te

A tua boca. O teu cheiro. Um pequeno nada de que posso chamar meu. Sinto-a neste momento. Ela toca-me em cada canto. Por dentro. Por fora. Por mim. A tua boca é um sitio de que posso chamar meu, mesmo que agora não lhe consiga tocar. Ela está em mim. Na minha saliva. Estás na minha boca. A minha boca sabe a ti. Sabe a Luz. Não sabe a uma luz. Sabe a Luz. Tu és a Luz. Apetece-me engolir, mergulhar em cada pedaço de saliva que surge. Parece uma fonte. Cada vez que penso que te tenho na minha boca, a saliva reprosduz-se inundando-me. É uma fonte de ti. Que me alimenta. A fonte. E o cheiro, mesmo que tenue fisicamente na camisola que visto e com a qual vou dormir, é vulcânico em mim. Vou acordar e voltar a dormir, repetidamente, com a mesma camisola até chegares, mesmo que o teu cheiro esteja em cada pedaço do meu corpo, que é teu, não o sendo. Por fora. Por dentro. Por mim. Mesmo assim não posso perder nada do pouco que tenho, sendo muito. É muito. É muito por que o que sinto é tanto. Se te tivesse por completo sem sentir o que sinto seria nada. Para quê ter alguém sem amar? Prefiro não te ter e sentir o que sinto. Penestras-me a cada instante. Ter-te em mim a cada segundo, mesmo que nem sequer te possa tocar. Tu és um sitio de que posso chamar meu, mesmo que não o sejas. És minha. Por que o que sinto é meu, mesmo que não te tenha. E sendo meu, é teu. Claro que quero mais. Muito mais. Mas não te quero sem sentir o que sinto. Sem que sintas o que sinto. Sinto-te. Sinto-te em mim. Por completo. Eu e tu numa estrada que possamos chamar nossa. Só nossa. Não há dois caminhos possiveis. O Amor é tudo. Um todo. O meu todo. O teu todo. O nosso todo. Só para ti. Só para mim. O Amor só tem uma direcção. O nosso caminho mesmo que escolhas outro. Espero-te. Quero que chegues. Virás com o teu cheiro azul. O cheiro igual a ti, que será a minha luz eterna. No momento que é eterno, mesmo que interrompido no minuto seguinte, por que tens de ir. Momentos eternos mesmo que finitos, quero-os, todos, até ao último, mesmo que o último já tenha sido. Mas quero mais. Quero tudo. Todo o tempo. Mesmo que o nosso tempo se esgote no próximo momento. Quero ter-te, sim ter-te, ao teu lado. Pelo Mundo fora sentindo milhares de emoções, milhares de faces, o palco, o corpo, o fluido, o mundo, milhares de vezes chamando-te sempre minha querida, meu Amor, minha Luz. Luz azul. O teu cheiro é azul. Cheiro de Luz. A Luz que me ilumina. Que ilumina o Amor. O meu caminho chama-se Amor. Amo amar. Mesmo que seja dificil dizer. Apetece-me dizer mil vezes. Amor. Amar-me. Amar. Amar-te. Só te Amo a ti. Não consigo Amar mais do isto. Amar tudo. Tu. Eu e Tu. O que sinto é meu. Sinto-te. És minha. Amo um sitio que posso chamar de nosso... em mim, Tu e Eu.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A palavra

Custa-me dizê-la. Não a vejo como uma palavra fácil. Foi sempre assim. Ao pronuncia-la o medo surge. Nem sei se tenho direito a dizê-la, ainda que esteja cá dentro cheia de vontade de viver.
Devia proteger-te. Afinal, o teu Mundo parece bonito. Mas, por que será que treme? Sendo uma questão que se te dirige, a verdade é que também me toca. Até por que sou frágil. E ela, a palavra-chave, quando vem à janela ainda mais frágil me deixa. Fico assustado. Ela quer vir à janela, como sempre quis. Mas nunca lhe dei grandes oportunidades. Eu fecho o estore para que apenas consiga espreitar sem ser vista. Mas, de vez em quando, apanha-me distraído e abre, como que por milagre, o estore e depois as portadas e faz-se anunciar ocupando toda a janela. E de repente, tudo à volta da janela deixa de se ver de tão forte que é a intensidade do foco de luz que a ilumina. Nem sei se tenho o direito de a enclausurar. Nem sei se quero. Não quero. De tal maneira que fico muito feliz quando ela me ludibria, sempre que conseguiu tamanho mérito. Fico feliz mais ainda mais frágil. É como que olhar uma criança, iluminada pelo sol, a brincar num cenário idílico. Porquê enclausura-la? Será que tenho medo que a Luz que a ilumina, de repente, se extinga? Tenho medo sim. Imagina essa criança a brincar nesse cenário idílico e de repente a Sol põe-se! O pôr-do-sol é lindo como ele só. Talvez seja por isso que a chegada da noite não seja tão assustadora. Mas imagina essa criança sem Luz, assim de repente. O cenário apesar de lá continuar, desapareceria. O calor da luz deixaria de se sentir. A frialdade do negrume assumir-se-ia. O cheiro seria diferente. Os olhos deixariam de ver, apesar de não sofrerem de qualquer afecção. A pele ganharia diferente forma. As lágrimas constipariam o cenário. A voz identificaria o sofrimento, tal era o desespero da criança por não ter quem a protegesse. Quem a levasse de volta ao lar, ao impulso, ao afecto… ao leite. Um Adamastor. No entanto, tudo está igual. O que apenas mudou foi a luz que voltará na manhã seguinte. Mas a criança ainda não sabe que tudo está igual, menos a tonalidade. Não sabe que a luz voltará ao amanhacer. Não sabe como se defender. Como encontrar o porto seguro. O Leite. Se não crescer, mesmo que o corpo se torne adulto, nunca viverá. Imagina uma mãe que não deixa o filho sair de casa para evitar qualquer oportunidade de que encontre o perigo. Enclausura-lo é mais fácil. Não o pode perder. Nada ganha. É de um egoísmo prodigioso, atroz. Para além de lhe usurpar a possibilidade de crescer, de aprender, de viver. Isto só é possível por que ela própria não é ninguém sem o rebento. Não existe, existindo. Não é livre. Nunca aprendeu a estar só, a ser capaz de metabolizar perdas ou seja lá o que for. Em consciência ninguém pode escolher tal caminho. Ou pelo menos deixar de tentar outro. A vida é só uma. Ninguém tem direito de o fazer. Não tenho direito de o fazer. Apesar de ser minha, a vida que tenho, não posso censura-la, censurar-me. Independentemente do que o futuro desenhar para mim. O futuro desenha para mim o que eu quiser. Por isso, se viver de janela fechada, o caminho será certamente decrépito, íngreme, incolor, será frio e sem odor, de frugais palavras e de comprimidos compassos. Sem emoções. Lento. Vazio. Fácil, sendo difícil. Não se ganha, não se perde, tudo se perdendo. Sem perigo aparente. Com perigo oculto. O perigo oculto é fulminante. A morte súbita não se faz anunciar ao perigo. Logo, ele não aparece. Mas esteve sempre presente, sempre a crescer, sempre a envenenar. Nem se dá pelo fim. Um percurso somítico, vil, cobarde. O percurso do medo.
Quero Viver-me de Janela aberta, escancarada. Quero tocar-me nos limites. Conjugar-me com todos os verbos. Chorar. Rir. Perder. Ganhar. Dar. Cheirar. Receber. Abraçar. Ouvir. Sofrer. Crescer. Ver. Sentir. Odiar. Aprender. Beijar. Viver-me… AMAR.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Chorar e rir

Choravam a rir. A cena era dramática, provavelmente a mais dramática da peça.
Explicaram-me no fim que o imparável riso se devia à acção. A acção do momento em que o Artur tira a roupa à Lisa, pouco depois do actor, Artur, abandonar o seu personagem António Serra. A acção, afirmaram, convidava o simpático casal a sair da sala, uma vez que Artur despia à força a sua amante. Ela estava em risco de nudez. Para além de que tinham problemas a resolver. A sós, sem público na sala, estariam melhor. Auto-sugestão que os fez chorar a rir. Eu vi. Faltou-me jogo de cintura mais forte. Se não desfiz a acção, a verdade é que também não tive coragem, no exacto momento da acção, de lhes perguntar por que riam. Podia tê-lo feito no momento em que me dirijo, em que o Artur se dirige ao público para que sejam testemunhas da vida real, para que vejam a vida real e não uma peça de teatro qualquer, apesar da peça em questão ter sido escrita pelo prémio nobel Luigi Pirandello. Depois do espectáculo, o senhor que se ria perdidamente confessou-me que esteve quase a intervir nesse momento em que me dirigia, em que o Artur se dirigia ao público. Pena não o ter feito. Não me explicou por que apenas ficou pela intenção. Para não alterar o guião? Pena não lhe ter perguntado, no momento da acção, por que tanto se ria. No limite, daria para perceber até que ponto era a minha disponibilidade para o personagem. Ou seja, se nesse momento seria o Artur a responder ou o Jorge. Seria o Jorge a alterar o Guião ou o Artur a revelar nova faceta? Um momento verdadeiramente importante pela sua singularidade mas que soube a pouco por ter sido castrado pelo casal que não passou da mera intenção de intervir, mas também por mim próprio ou pelo personagem actor Artur por não termos ido mais além. Quero, um dia, ser capaz de me esquecer de mim, de me emprestar não apenas parcialmente ou por breves instantes aos personagens, mas de me emprestar por completo. Tenho de lhes emprestar tudo o que tenho, toda a minha história, toda a minha verdade para que tenham a vida que merecem durante o exacto momento que é suposto estarem vivos. Quero, preciso de continuar a praticar esta arte que tanto me fascina. No teatro, sinto-me mais perto de mim.
Noutra circunstância, lembro-me que também eu chorei e ri, ao mesmo tempo, quase sem dar por isso. Afinal, era realmente Alta Comédia, da melhor, num dia igual ao outro, apesar de ser véspera de Pascoa, num dia em que vi a melhor peça de teatro de sempre em Portugal, se é que a memória não me atraiçoa. Chorei e ri com a história, com o personagem que Nuno Lopes representava notavelmente na sala estúdio do Teatro que foi inaugurada há 164 anos aquando do 27º aniversário da princesa.
É isto, Alta Comédia. Quando dois sentimentos tão dispares se sucedem sem que haja tempo para se pensar nisso. Chorar porque a cena é dramática. Preciso de sublinhar que a cena pode ser dramática, ou o que quiser, no papel mas se o actor não estiver disponível o personagem não tem conflito, não tem verdade, logo não existe e tudo se perde, por que se perdem as lágrimas ou o sorriso do espectador.
Sim, sublinho que chorei. E quando as lágrimas me caíam, soltou-se um sorriso tão espontâneo que passei a perceber o que é realmente Alta Comédia. Mas sobretudo fiquei feliz por ter percebido que estava entregue a mim mesmo. A atenção estava focalizada no que queria. Até parecia que estava a olhar a realidade. Ou melhor, eu estava a olhar a realidade. A Verdade estava no meio dos personagens. Na plateia está o público. A cena foi-me buscar à plateia. Claro que sim. Aquela história tinha mais do que os dois personagens visíveis. Eu poderia ser um vizinho coscuvilheiro que havia decidido esconder-se atrás da janela, do lado de fora da casa no meio dos arbustos, a espiar tão inesperada visita do irmão de Jack, quinze anos depois de o ter abandonado. Podia ser isto ou aquilo, por que passei a fazer parte daquela história mais do que de mim mesmo. Eu fazia parte daquela história por que estava entregue a mim mesmo. Estava livre. O Homem livre é aquele que aprende a estar consigo mesmo, ou seja, a estar só mesmo que acompanhado. Eu estava só, mesmo estando rodeado de gente. Tinha decidido ir ao teatro sem companhia. Sem bilhete para um espectáculo já esgotado até final da temporada. Como em Londres, há sempre uma reserva que não se confirma. Felizmente. E Tudo fluiu. Eu, as minhas lágrimas, o meu sorriso. Pena foi quando tive de me voltar para fora, para a ficção, no exacto momento em que as luzes acenderam. Os personagens tinham saído de cena. O público fez-se sentir. As luzes foram fronteira entra a realidade e a ficção. A realidade do palco. A ficção da plateia. Preciso de voltar à realidade sempre que possível. Sim, por que quero, preciso de continuar a ver teatro. Na plateia, sinto-me mais perto de mim tal e qual como se estivesse no palco.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

--´-@

Tal qual como que de uma veia se tratasse.
Uma artéria por onde circula o nosso fluido, a uma velocidade vertiginosa, inimaginável, ofegante.
Uma ligação secreta, invisível mas cheia de luz.
A Luz que só os teus olhos vêem, sim, os teus olhos que são os mesmos por onde olho.
Apetece-me fecha-los para sentir ainda mais as pulsações, que são só nossas.
Para ouvir o fluido a correr, o fluido que é só nosso.
A correr de uma coração para o outro.
Corre, ele corre, corre, para o coração que é o mesmo.
Sinto-te mais do que nunca, meu Amor.
Sinto-te a tocar-me o ombro.
O meu ombro esquerdo ganha vida ao sentir o toque da tua face direita.
Os sinais do teu lábio encostam-se ao meu coração.
E eles brilham para meus olhos, que são os mesmos que os teus.
Os teus sinais brilham ainda mais, nesta escuridão.
Sinto-os no meu peito. Sinto-te no meu peito.
Quero que fiques assim, só assim, no meu peito, que é o mesmo que o teu.
Ficar assim, o tempo que for preciso, sem dizer uma palavra.
Rapara no cheiro, huuuummm o cheiro do nosso fluido transpira como um campo das mais belas Flores.
Há flores em todo o lado, pelo mundo inteiro, o mundo que é o nosso.
As flores crescem, sorriem, cantam, brincam, transpiram alimentadas pelo nosso fluido.
Esse fluido secreto, sedento, sincero que faz de estafeta entre o coração, o meu e o teu que é um só.
Sinto-me numa piscina, envolto por todos os lados... envolto de ti, meu Amor!
Quero ficar assim, até voltar a abrir o olhos e ver-te a sorrir.

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terça-feira, 23 de março de 2010

Olhar o MEDO

http://linguamodadoisec.blogspot.com/2010/03/ensaio-sobre-o-medo.html

"No Teatro descobri que existem duas realidades, mas a do palco é muito mais real"
São palavras de Arthur Miller que encontrei quando pesquisava sobre a sua vida, e que escolhi para baptizar o blogue do ArtesCénicasGrupo.
Na minha estreia no Teatro, há cerca de dois anos, senti o que mais tarde viria a descobrir nestas palavras de Arthur Miller. Senti, por momentos, estar a ser mais verdadeiro em palco do que na vida. Ou quanto muito, mais esclarecido. Talvez Calderón tenha razão quando escreve que a vida é um sonho e a única coisa real é a finitude. Ouso dizer que o Palco fica no meio, por que lá abrimos os poros, como que se de vulcões se tratassem, e enchemo-lo com o que vai cá dentro. Haja disponibilidade para que tal suceda. Um fenómeno generoso para o próprio actor e consequentemente para quem nos dá a honra de nos vislumbrar da Plateia. Arriscaria até a dizer que o personagem sabe mais do actor do que o próprio actor de si mesmo.
O encenador Rui Mendes disse numa entrevista que o actor tem a possibilidade de fazer em Palco o que não pode fazer no dia-a-dia. A esta frase, eu acrescentaria o verbo ser. O Actor é em palco o que tantas vezes esconde na vida. Ou ainda, o actor descobre em palco o que nem sempre descobre na vida, a não ser que tenha a pertinência de se percorrer, de olhar para dentro, de conseguir estar em silêncio, mesmo que acompanhado. E para isso é preciso coragem para enfrentar o MEDO que surge quando se decide fazer tal percurso. O MEDO que é exclusivamente fruto das nossas mentes.

Do teu texto tão belo, claro e magnificamente escrito, e em relação ao meu desempenho, apenas consigo confirmar a minha postura séria e empenhada. Por que é desta forma que encaro o Teatro. Estou sempre ansioso pela chegada dos dias do espectáculo. Quanto às restantes palavras, registo tudo para que, nos dias de dúvida, as possa reler de forma a nunca desistir. Mas permite-me ainda que as comente da seguinte forma. O Mundo é conforme o vemos. Cada um vislumbra-o de forma diferente e com distintas totalidades. O que viste no sábado está sobretudo em ti. Encontras-te, na peça, a tua cor. Há quem encontre cores diferentes da tua. Há quem encontre até cores desagradáveis. Há quem não encontre qualquer cor. Diria que esta última é a que nos convém menos. Sobretudo, estamos ali para contar uma história que só é passível de ser contada se o actor tiver disponibilidade para gerar conflito na sua personagem. Se isto acontecer, em principio, os espectadores encontram as suas cores, despoletando-lhes emoções, sejam lá quais forem.
Como disseste, mal nos conhecemos. Creio que nos vimos apenas 3 vezes na vida. Fico muito feliz por saber que viste na nossa peça essa cor forte, positiva e cheia de vida que usaste para escrever tais palavras. Palavras que surgem de ti.

Um Abraço,